Negar déficit da Previdência é “contabilidade criativa”, diz Rogério Nagamine, coordenador de Previdência no Ipea
São Paulo – A Reforma da Previdência parecia cada vez mais próxima de ser aprovada quando a bomba caiu no colo de Michel Temer.
Joesley Batista, controlador da JBS sob investigação, gravou o presidente em um encontro fora da agenda discutindo atos de obstrução de Justiça e a compra do silêncio do deputado cassado Eduardo Cunha.
As reações de Temer contém inconsistências, o mercado treme e a base do governo tenta mostrar união ao mesmo tempo em que busca alternativas para uma possível eleição indireta.
Nesse ínterim, ninguém sabe para onde vão as reformas. O relator da Previdência, deputado Arthur Oliveira Maia (PPS-BA), disse nesta segunda-feira (22) que não há mais data.
Já o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou também ontem que a votação em plenário da reforma da Previdência deve começar entre os dias 5 e 12 de junho.
Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, admite atraso de “semanas” mas afirma que a reforma passa mesmo sem Temer. A Standard & Poor’s colocou a nota do Brasil em revisão para possível rebaixamento.
A razão é simples: sem reformas, o Estado brasileiro pode ficar insustentável – ou, no mínimo, estourar em breve o teto de gastos já aprovado.
“A gente gasta em Previdência o que seria esperado para um país com o dobro da participação de idosos na população – pelo menos”, diz Rogério Nagamine, coordenador de Previdência no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e autor de vários estudos sobre o tema.
Na terça-feira passada (16), antes das denúncias contra o presidente virem à tona, ele conversou com EXAME.com sobre a reforma da Previdência:
EXAME.com – Há quem negue a existência do déficit na Previdência. Como você responde?
Rogério Nagamine – Sim, existe déficit. No ano passado, o do regime geral do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) ficou em torno de R$ 150 bilhões, se você somar o de R$ 77 bilhões nos servidores da União, é um déficit na casa dos R$ 220 bilhões.
A diferença é nas receitas e despesas que você considera. Há quem defenda que há um superávit na seguridade social como um todo: Previdência, Saúde e Assistência. Mas essa conta só dá superávit porque tira a Previdência dos servidores da União. É uma manipulação contábil, uma contabilidade criativa para tentar negar um problema.
E independente disso, a despesa com Previdência está muito acima do esperado para nosso padrão demográfico. A gente gasta o que seria esperado para um país com o dobro da participação de idosos na população – pelo menos.
A despesa (considerando tudo, assim como Benefício de Prestação Continuada, que é quase uma aposentadoria não contributiva) se aproxima dos 14% do PIB. É muito alta e diminui o espaço fiscal para outros gastos como educação e investimento em infraestrutura.
No ano passado, 54% da despesa primária do governo federal foi com Previdência no conceito mais amplo (INSS, servidores e BPC).
Mas onde o rombo é mais grave? O déficit dos servidores é comparável ao do INSS, mas beneficia muito menos gente e com remuneração muito mais alta.
O déficit per capita dos servidores públicos da União é muito maior. O déficit da União é de R$ 77 bilhões para 1 milhão de inativos, enquanto o do INSS é de R$ 150 bilhões para 29 milhões de beneficiários. Exatamente porque o valor médio dos benefícios é muito superior.
Para ter uma ideia, a aposentadoria média no Legislativo e Judiciário até pouco tempo atrás era de 28 mil reais. O benefício médio do INSS é pouco mais de mil reais.
A reforma toca num ponto importante: dá um prazo para que todos os regimes próprios instituam Previdência complementar de forma que os novos servidores públicos tenham o mesmo teto do INSS.
Isso melhora a situação fiscal dos regimes próprios. A União já implementou, assim como alguns estados, mas ainda faltam 2.100 regimes próprios.
Isso dá maior equidade aos trabalhadores do setor público e privado, e estudos mostram que também melhora a distribuição de renda. Se o teto já estivesse implementado para todo mundo, isso reduziria a despesa com Previdência para a casa dos 9% do PIB.
Segundo dados da PNAD, os 3% de aposentadorias acima do teto do INSS consomem cerca de 20% do total da massa de gastos. Com o teto, essa taxa cairia para cerca de 12%.
Um dos pilares da reforma é a idade mínima, algo que poucos países não tem, de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens. Outro é o aumento de 15 para 25 anos no tempo mínimo de contribuição para receber benefício. Isso não prejudica os mais pobres, que tendem a ficar mais tempo fora do mercado formal?
Concordo que a idade mínima é fundamental, acabando com a aposentadoria por tempo de contribuição. No ano passado, a idade média da aposentadoria por tempo de contribuição foi 53 anos para mulheres e 55 anos para homens.
Você está pagando aposentadoria para quem tem plena capacidade laboral, quando deveria ser para quem a perdeu.
E favorece os mais ricos, que comprovam mais facilmente esse tempo de contribuição.
Geralmente quem se aposenta com essa idade está entre os mais ricos, porque tem uma trajetória laboral mais estável e consegue comprovar 30 anos de contribuição já na faixa dos 50 anos.
O aumento do tempo de contribuição tem que ser debatido e alguns grupos podem ter dificuldade de conseguir esses 25. Mas se não conseguir, vai para o benefício assistencial e não fica totalmente descoberto, apesar da idade para o benefício também subir (de 65 para 68 anos).
O debate só não pode ser feito da forma simplista que vem sido feita, porque tem que ver como vai evoluir o mercado de trabalho. O fato da escolaridade da população estar melhorando também ajuda, porque as pessoas mais escolarizadas em geral têm uma densidade contributiva maior.
Aqueles que pegaram o mercado de trabalho ruim na década de 80 e 90 não tinham à sua disposição planos como o MEI (Microempreendedor Individual) e Simplificado, que também facilitam a comprovação de mais tempo de contribuição.
E isso também incentiva a própria contribuição, apesar de complicar para quem mais dificuldade no mercado formal de trabalho.
Os militares não estão na reforma. Houve uma tentativa de barrar novas exceções, que acabaram sendo dadas para policiais e professores. Qual a importância disso?
Diminuiu em cerca de um quarto a economia prevista para os próximos 10 anos. São recuos relevantes, mas aceitáveis. Ninguém imaginava que a reforma ia sair do jeito que entrou.
O que é ruim é que isso ocorreu muito mais na base da pressão e do corporativismo do que de uma visão mais técnica.
O recuo nas regras de aposentadoria rural foi um caso disso? Não há risco de que mais pessoas tentem migrar para esse regime?
O recuo na aposentadoria rural teve um lobby forte do Congresso e esse mundo tem suas especificidades, mas entendo que a gente está criando algumas diferenciações que precisam ser debatidas, como uma situação que trata muito diferente o pobre no setor urbano do pobre no setor rural.
Uma mulher pobre no setor rural, por exemplo, talvez passe a receber benefícios com 57 anos enquanto uma pessoa no setor urbano vai se aposentar aos 62, ou 65, ou vai para o BPC aos 68.
Além do risco, que já acontece e vai continuar, de algum tipo de fraude para quem não é trabalhador rural tentar se enquadrar como tal.
A reforma não foca no lado da receita. Não é o caso de rever desonerações e mexer também no financiamento?
Mas ela mexe, ao eliminar a renúncia na exportação do agronegócio. Alguém pode citar as outras (do Simples, entidades filantrópicas, entre outras), mas essa foi a única mexida pela PEC porque é a única que está na Constituição. Todas as outras são por legislação infraconstitucional. E outras estão sendo revertidas, como a da folha de pagamentos.
Há medidas de receita e acho que todas têm que ser reavaliadas do ponto de vista do custo-benefício. Mas não dá para achar que resolve só pela receita, porque o crescimento da despesa é insustentável.
Mesmo se a reforma fosse aprovada no modelo atual, precisaríamos continuar falando em novas reformas no curto prazo?
Com os recuos já feitos, é bem possível que já no próximo governo a gente tenha que voltar a discutir Previdência. Com novos recuos, essa probabilidade aumenta.
Você é a favor de aumentar a idade mínima de forma automática com base nas mudanças de expectativa de vida?
Sim, é uma tendência internacional. Muitos países estão adotando esse mecanismo de que na medida que a expectativa de vida aumenta, ou sobe automaticamente a idade de aposentadoria ou reduz o valor de benefício.
O fator previdenciário tinha isso (expectativa aumentava, cai o benefício). Foi eliminado ou muito enfraquecido pela regra 85/95, mas estava na PEC essa alta da idade mínima com gatilho pelo aumento da expectativa de vida.
Na década de 90, alguns países da OCDE implementaram isso, e hoje cerca de metade tem algo do tipo. É fundamental porque estudos mostram que as projeções de expectativa de vida feitas no passado em geral estavam subestimadas e a expectativa de sobrevida cresceu mais do que o imaginado.
Fonte: Exame.